Sonho
A busca de Alice pela verdadeira identidade
Na infância a jovem rezava para acordar uma menina
Jô Folha -
As roupinhas azuis e os carrinhos nunca conquistaram a atenção de Alice, hoje com 20 anos. Assim como as outras meninas da sua idade, ela gostava de desfilar pela casa usando os saltos da sua mãe. Nas lojas de brinquedos, eram as bonecas e os ursinhos de pelúcia os primeiros a receber seu olhar. Na escola, gostava de brincar com as meninas e detestava as aulas de educação física, quando precisava se juntar aos meninos para jogar futebol.
A infância e boa parte da adolescência de Alice deveriam ter sido como de qualquer outra guria. Não fosse por um motivo: o preconceito. Conhecendo na pele e desde pequena a crueldade, vinda em boa parte das vezes de seus colegas, Alice sofreu os mais diferentes tipos de agressão simplesmente por tentar ser quem era: uma menina. Essa é a realidade dela e de outras transexuais que vivem no Brasil, o país que mais mata pessoas trans no mundo.
Fugindo totalmente das estatísticas que rodeiam seus semelhantes, Alice sempre contou com o apoio da família. Em especial da mãe, Raquel. “Sempre ouvi que eu era a culpada por ela ser afeminada”, relata. Alice, no entanto, sabe que nem mesmo um pai presente ou qualquer outra presença masculina mudaria a sua essência. “Eu rezava todas as noites para acordar uma menina igual a Barbie”, brinca.
Alice rezava porque sabia que ser uma pessoa trans não seria fácil. Ela conheceu o preconceito no momento em que entrou para a escola e tinha a certeza de que, se resolvesse ser quem realmente é, a batalha seria ainda mais dura. “Na segunda série, quando mudei de colégio, decidi que eu iria me adaptar ao gênero masculino e não deixaria ninguém perceber meus traços ‘afeminados’”, lembra.
Não adiantou. Por mais que tentasse guardar a Alice para si, a tarefa era impossível. Foi na adolescência, período conturbado para qualquer pessoa, que as diferenças entre o seu gênero e o seu corpo começaram a ficar insuportáveis. “Nessa época eu bebia até não sentir mais o fardo de estar viva”, conta. Os problemas se estenderam para o boletim e ela precisou repetir de ano na escola.
A situação se encaminhava para que Alice engrossasse as estatísticas sobre transexuais no país. Excluídas do ambiente escolar e do mercado de trabalho, 90% delas acabam recorrendo à prostituição como meio de sobrevivência, segundo a Associação Nacional dos Travestis e Transexuais (Antra). Essa realidade, agravada com o preconceito que muitas vezes acaba em violência, baixa a expectativa de vida dessa população para 35 anos.
Ela sabia que este não deveria ser o seu destino e hoje cursa Letras - Francês na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Até chegar à faculdade, foram os concursos de beleza que a mantiveram esperançosa. “Nesses lugares eu conheci pessoas iguais a mim e descobri que somos tão dignas quanto qualquer outra pessoa”, fala. A possibilidade de usar um vestido, ter o cabelo sonhado e ser maquiada era sua maior realização. “Tinha chegado a hora de eu ser realmente quem era”, comenta.
O processo de transição se iniciou há cinco anos e o uso dos hormônios é acompanhado por uma ginecologista particular. “A automedicação é muito perigosa. É importante que as pessoas procurem orientação médica”, aconselha Alice. O Sistema Único de Saúde (SUS) possui políticas voltadas aos transexuais, especialmente ao processo de redesignação sexual, mas o atendimento ainda é muito precário.
Na cidade, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) iniciou um trabalho de atendimento aos transgêneros em agosto de 2017. Atualmente, 23 pessoas participam dos encontros quinzenais promovidos pelo grupo de apoio mantido pelas secretarias de Assistência Social e Saúde. Uma parceria com endocrinologistas da UFPel irá possibilitar o tratamento hormonal através do SUS no município. De acordo com a SAS, no Estado só existem locais de referência para este tipo de trabalho em Porto Alegre.
Alice participa dessas reuniões para auxiliar os jovens. Raquel, sua mãe, também atua no grupo e acompanha a filha em todos os concursos de beleza que participa. Ela conta que é uma das únicas mães que acompanham as filhas nesses ambientes. Entendendo a importância do apoio familiar, busca conscientizar os pais a não deixarem seus filhos. “Se tu abandonas o teu filho, ele vai para um caminho que não é bom”, pontua.
O último passo
Para realizar seu maior sonho, a cirurgia de redesignação sexual, Alice conta com a ajuda de amigos. No Brasil, o procedimento é feito em apenas cinco estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Goiás e Rio Grande do Sul (Porto Alegre). Com pouca oferta e muita demanda, a fila de espera para a cirurgia é enorme. Em 2017, o tempo chegava a 13 anos no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife.
Por isso, Alice pretende fazer a cirurgia na Argentina. Ela estima precisar de R$ 35 mil para cobrir os gastos com o procedimento, a hospedagem e o deslocamento até o país vizinho. Só a cirurgia custa R$ 28 mil e ela vai precisar ficar lá por um mês. “Tenho a esperança de juntar o dinheiro logo para somar mais ainda na minha experiência e passar isso para as pessoas”, fala.
Para conseguir a verba, ela está organizando um galeto solidário. A marmita com dois pedaços de galeto e uma porção de salada será vendida a R$ 20,00 e entregue ao meio-dia do dia 22 de julho, no ginásio Bola na Rede (rua Barão de Santa Tecla, 193 A).
Ajude a Alice!
Vaquinha virtual.
Galeto solidário: interessados em adquirir os convites para o almoço, por R$ 20,00, podem entrar em contato através da página.
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